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Eis o Pescaria, grupo literário pioneiro nas terras do Araras, hoje Varjota – Ceará.
Grupo de caráter cultural, primando as Letras, denominado Pescaria, cujo objetivo é pescar indivíduos às letras e artes, ofertando-os o alimento – o peixe – da liberdade, o saber.

Venha pescar e ser pescador (a) da literatura junto da gente.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Nasce Verbo Mar

        Há um semissilêncio, o barulho dos automóveis ainda discreto e o bocejar do mar mais ao fundo quase imperceptível, pela janela que abafa o ambiente. As cortinas de renda peneiram o Sol, que desponta por entre algumas nuvens, os primeiros raios, mesmo mornos, marejam luz e sombras por cima da escrivaninha logo posicionada, iluminam: boletos; recibos; extratos; bilhetes ou cartas; o cinzeiro transbordado; um diário, talvez uma agenda. O mogno, possivelmente de alguma reversa indígena, reveste todo o cômodo, estantes ainda organizadas e preservando segredos, a biblioteca imersa na breve bonança dos tempestuosos dias que se seguiam. Uma manhã comum, talvez, por algum canto do mundo.
A calma quebrada em ascensão. Ouve-se: passos trôpegos, o ranger de chaves, vidraçaria estilhaçando, um respirar pesado, um corpo faz as paredes ressoarem. O relógio acima da porta indica 6:50, sente-se a aproximação. Estrondo. A porta abre violentamente, pobre infeliz, apoiou-lhe todo o peso pelo ombro enquanto a abria, foi ao chão. Respira com uma tremenda dificuldade, assim como um peixe que estranha a atmosfera. Carregava uma garrafa de uísque 12, que se resume apenas ao gargalo agora. Chorando o álcool derramado enquanto o lambe na textura da madeira, numa tentativa desesperada de beber a fuga desastradamente posta, sequer repara que sangra.    
A biblioteca era refúgio desde menino, quando seu pai, professor universitário e jornalista, lhe ensinara a paixão pela leitura e a escrita. O pai a alimentou por anos com livros, uma particular coleção de primeiras edições, os clássicos desde Cervantes a Hemingway, passando por Machado, também uma família de dicionários e artigos científicos nas estantes, nas paredes reportagens premiadas e fotos nostálgicas em preto em branco. Porto pra ambos, e só a eles o acesso irrestrito, às vezes passavam ali fins de semanas inteiros, organizando papeis, desempoeirando os livros, espalhando naftalina para as traças, liam entre si mais uma vez algum clássico ou uma nova aquisição e seus diários secretos. Sua mãe não os questionava e a empregada, uma mãe extra deles, fazia um ou outro comentário despretensioso, elas, as mulheres da casa, debochavam da mística encarnada no lugar.  Mas nenhum terceiro entrava no cômodo sem convite. O apartamento ficara de presente de casamento para o menino já homem, já que, seus pais se mudaram para um condomínio residencial, e sua jovem esposa aprendeu a respeitar seu outro casamento com a biblioteca.
     Apesar de ele estar ao choro, aos soluços e aos engasgos, a rotina do apartamento não era essa, o despertar era mais agradável, vinha de um “bom dia” sussurrado e preguiçoso acompanhado de um beijo tênue próximo aos olhos. Tinham pouco mais de um ano de casados, a lua de mel parecia se estender, similar a um desses casais de classe média alta de comercial. A esposa, sempre de pé antes do marido e da própria empregada chegar, avivava o lar abrindo as cortinas e as janelas, regava as plantas da sacada, ligava o rádio num volume manso e preparava seu conhecido café durante um samba ou uma da MPB. Geralmente com sua cara inchada e arrastando os passos, ele aparecia na cozinha e interrompia a prosa cumprimentando a empregada e segunda mãe, talvez uma dessas “Maria’s”, ficara junto com o apartamento, e com a boca a eucalipto beijava a esposa. Ele num calção frouxo e quase sempre sem blusa se juntava a elas e tomava seu café da manhã continuando a conversa, e ela sempre impecável nos seus vestidos floridos. Quando o café era feito, sei lá, por “Maria”, o marido fintava a esposa num olhar de desaprovação, mas nada sério, ela retribuía num sorriso tímido de bochechas ruborizadas, e ele não terminava sua grande xícara habitual. Não era incomum ele tomar o café na biblioteca, também seu escritório, quando precisava analisar algum papel às pressas. Numa dessas manhãs de café e papeis ele saiu deixando a porta entreaberta, a mulher passando pelo corredor pensou em fechá-la, porém não pode deixar de reparar a xícara manchada e um pedaço de bolo intocado num pratinho sobre a escrivaninha, pensou “não há mal nenhum, é rápido”. Ao recolhê-los seu olhar escorregou despreocupado pelos papeis ali postos, a maioria coisas de escritório, mas estatizou justamente num diário, do qual nem sabia a existência, aberto numa data recente. Confessava uma outra mulher, folheou-o e ratificou a suspeita, haviam bilhetes anexados e propositalmente perfumados, com vocativos mais que carinhosos, encontros marcados e um telefone que se repetia. Aquilo explicava seus recentes atrasos e o gaguejo a justificá-los. Não ponderou muito, fez as malas e às lágrimas uma carta posta precisamente nas tais páginas. Há um mês já correra o fato. Um caso de traição comum, talvez, por algum canto do mundo.
      De quatro pés, na biblioteca, aos prantos, o assoalho sorve o uísque, o sangue e as lágrimas. Não aparenta a saúde de outrora, com muito esforço se levanta, tenta se recompor, arregaça as mangas, afrouxa ainda mais a gravata, num movimento descendente pela camisa, enxuga um pouco o corte em sua mão esquerda, ainda portando a aliança, natural, sem algum tipo de assombro.  Esfrega os olhos vermelhos e marejados com o antebraço direito, prende o soluço e se vê diante da janela, seu reflexo oscila ou talvez seja apenas a embriaguez, não se reconhece, pensa consigo “Que desgraça sou?”, tateia o peito, retira mais um cigarro da carteira posta no bolso da camisa e acende-o com dificuldade, o isqueiro está banhado. Há dois dias que começara a fumar.  Cambaleando alcança a cadeira, senta e endireita-se diante da mesa, zonzeando como à deriva.
      Da terceira gaveta da direita, contando de cima pra baixo, retira um cantil de prata, herança de seu avô, era companheiro fiel no último mês, e também um revólver, muito bem lustrado e alimentado. Revólver posto na mesa, um gole, amarga o malte e a hemoglobina escorrida no metal, traga mais uma vez o cigarro, se debruça e folheia o diário, nas primeiras páginas um mapa mundi, ao qual por segundos admira o azul e seus fusos horários ajustados a partir de Greenwich, mais algumas páginas: poemas não entregues a esposa e outro não entregue a amante; compromissos desonrados e adiados; dias em branco. A carta de despedida repousa adiante de seu lado direito, tantas vezes já lida, amassada e manchada. Numa página imaculada não condizente com a atual data, deteve-se, puxa sua Paker 51, sua joia mais estimada, e mesmo com a visão turva e náufrago do próprio pensamento, põe-se a escrever pela última vez, as pálpebras pesadas, cigarro a boca. Não mais resiste, tomba escorrendo pela escrivaninha até o chão, com o diafragma, pra cima, ondulando ressacado. Uma tentativa de suicídio fracassada comum, talvez, por algum canto do mundo.  
      O cigarro aceso e derrubado sobre os papeis inicia o fogo, alastrando-se fácil pela madeira. O relógio marca 7:00, a pontualidade britânica, insisto, de “Maria”, entra pela porta destrancada do apartamento, observa a desordem e a fumaça negra oriunda da biblioteca, assustada e a pés ligeiros invade o recinto, e pescando com os olhos pelos cantos localiza-o no chão.  Com uma descarga de adrenalina, feito maremoto, arrasta o desmaiado até o corredor do prédio. Compulsivamente bate à porta de um vizinho para que os bombeiros e uma ambulância sejam acionados. Um incêndio acidental comum, talvez, por algum canto do mundo.
     O fogo, dançando feito bailarino, consume com fome desesperada: aquele diário com seus segredos e fusos horários e tantos outros e cartas, ocultos por Bento, Quincas e Bras, numa das estantes; abrasa o mogno, que ardendo, liberta almas aprisionadas de um antigo cemitério indígena; põe a vapor o sangue, o uísque, as lágrimas e a saliva ali derramados, por descuido ou desespero;  desintegra as fotografias, permitindo o tempo petrificado atingir a confluência do presente; Queima a Montanha de Mann, as Flores de Baudelaire, o Retrato de Wilde, o Pássaro Azul de Buk, a “Estrada” de Kerouac, o Crime de Queiroz e o Castigo de Dostoievsky, as baratas de Kafka e Lispector, a Pedra de Drummond, os incontáveis verbetes dos Aurélio’s e o restante dali.
     Cinzas embebidas pela água, nada parece restar da antiga biblioteca, mas translucido ora invisível algo se camufla na moribunda fumaça e na distorção quente do ar. Um espectro ou entidade, nem deus nem homem, insone com todas as horas do mundo, nacionalizado por todas as bandeiras, tendo em si um oceano de palavras, espíritos e  DNA, atordoado observa seu útero e substância sem se fazer notar, no seu parto e batismo de fogo tem nas últimas palavras incineradas seu nome: Verbo Mar.

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